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  • Ori Boteco

Já marcaram a minha cremação!!!

10 de julho de 2023
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Sabe aqueles dias frios e sem sol em que nos sentamos à mesa para o café da manhã e não há  vontade de falar nada. Só olhando pela basculante fechada, perdido nos pensamentos de coisa nenhuma. De repente vem aquela frase lapidar, mais fria que o tempo lá fora, e você fala para tua mulher que deseja ser cremado. Surge um brilho no olhar dela que você já tinha esquecido que existia. E para seu espanto, com um calendário na cabeça, ela marca para sábado. 

Meu susto foi tanto, que rígido, não neguei de pronto a inusitada festa que acabava de ser lançada. No início pensei ser brincadeira, mas ao vê-la empunhar o celular e ligar para minha sogra e vociferar com o ânimo de quem ganhou na Mega, gelei.

“Vai ser sábado, mãe!!!… ele quer ser cremado”. Dalí já passou para uma lista organizada mentalmente. Como em um passe de mágica, começou a fazer ligações, revelando um talento nato para a organização de eventos póstumos. Afinal, nada melhor do que planejar o fim de alguém que se imagina já se foi de forma precisa e eficiente, não é mesmo? Creio que é isto que pensam as esposas que têm maridos que falam pouco, e são muitos.

Atônito, confesso que fiquei surpreso com a rapidez com que ela agendou minha incineração. Afinal, lembro-me claramente de quando sugeri uma pequena reforma no banheiro, e levou meses para que ela tomasse uma decisão. Mas quando se trata de queimar o marido, ela se torna um verdadeiro prodígio da logística. Talvez eu devesse ter mencionado meu desejo de ser cremado bem antes, só para acelerar as coisas em casa.

Minha esposa, com seu sorriso angelical e suas habilidades organizacionais mortais, telefonou para uma empresa funerária e fechou todos os detalhes. Ela escolheu a urna, a música de fundo e até o cardápio para o velório. Ligou para dona Helena do salgadinho do morro, o melhor das festas. Não podia faltar. Tudo perfeitamente alinhado com as minhas últimas vontades, pelo menos segundo ela.

Mas admito que fiquei um pouco preocupado com a velocidade dessa operação. Será que ela está tão ansiosa para se livrar de mim? Talvez eu tenha cometido um erro ao fazer essa declaração em um momento inoportuno. Ou talvez eu não tenha sido claro o suficiente e ela tenha interpretado como um pedido urgente. Será que ela acha que já estou morto por dentro e só falta oficializar?

Enquanto aguardo ansiosamente a minha “hora da partida”, com a lista de convidados sendo elaborada e os convites enviados pelo zap, só posso agradecer por ter uma esposa tão diligente e… determinada. Só espero que ela também se lembre de marcar um evento de renascimento para o domingo seguinte. Afinal, quem sabe o que o futuro nos reserva?

No meio de toda essa agitação funerária, um dos meus amigos próximos, que conhecia bem o amor que minha esposa tinha por mim, não pôde deixar de fazer uma observação irônica. Ele disse:

“Você vê, cara, deu uma chance para o amor verdadeiro, e ela não perdeu tempo em agendar sua cremação!”

Foi impossível não soltar uma gargalhada diante dessa provocação. Ele tinha razão, afinal. Enquanto muitos casais lutam para encontrar tempo para um jantar romântico ou uma escapadinha de fim de semana, aqui está minha esposa, ansiosa para cuidar dos preparativos do meu fim último.

Quem diria que o amor verdadeiro se manifesta de uma maneira tão peculiar? Talvez seja uma forma de expressão inigualável, marcada pela eficiência e pelo senso de organização. E eu, sortudo, tive o privilégio de experimentá-lo de maneira tão única.

Enquanto observo minha esposa preenchendo formulários e planejando todos os detalhes do meu “adeus flamboyant”, não posso deixar de me sentir grato por ter encontrado alguém tão especial. Por mais estranho que pareça, ela sempre sabe como transformar os momentos mais banais em algo memorável. Não quero parecer sovina, mas tanta criatividade sempre teve um alto preço.

De qualquer forma, tenho certeza de que esse sábado será um dia para lembrar. E quando olhar para trás, poderei dizer com um sorriso no rosto que, de certa forma, eu “dei chance” ao amor da minha vida expressar sua criatividade e dedicação de uma maneira única e inesquecível. E que venha o próximo capítulo da nossa história, seja ele qual for.

Enquanto minha esposa estava ocupada organizando os preparativos para minha incineração, outro amigo, um tanto chocado com a rapidez dos acontecimentos, soltou uma exclamação surpresa: “Mas já!? Você mal acabou de comemorar teu aniversário!?” Sua expressão confusa era impagável. Ele estava genuinamente perplexo com a rapidez com que minha esposa transformou meu desejo em ação. Eu não pude deixar de rir diante da sua reação. Afinal, em um relacionamento com minha esposa, as coisas nunca seguem o ritmo comum.

Eu respondi ao meu amigo: “Ah, meu caro, quando se trata de organização e planejamento, minha esposa é uma verdadeira força da natureza. Ela nunca deixa para depois o que pode ser feito de forma eficiente agora. E, aparentemente, isso também se aplica ao meu funeral!”. Não sem ficar com uma peninha atrás da orelha: “por que tanta pressa???”

Então, enquanto meu amigo balançava a cabeça, tentando entender a rapidez do processo, eu simplesmente disse: “Bem, pelo menos não vamos desperdiçar tempo prolongando o inevitável, não é mesmo? E, quem sabe, talvez eu tenha uma festa surpresa de aniversário no além, com direito a bolo de cinzas!”

Incrédulos,  meus amigos perceberam que, com minha esposa ao meu lado, a vida sempre foi uma aventura inesperada. Ela se mantém nos dedos dos pés, surpreendendo-nos a cada momento. E, embora eu possa ter mencionado a cremação em um momento inoportuno, tenho certeza de que essa história renderá muitas piadas e memórias divertidas para compartilhar no futuro.

Pessoas chegando e chegando pessoas. O pior dos chegantes chegou: minha sogra. Nesta hora deu vontade de sugerir uma cerimônia dupla. Se eu tivesse que ir, valeria o sacrifício, levaria aquela cabra para tornar o mundo um pouco melhor. Foi pensar uma coisa boa para o mundo, a opinativa não faltou a sua prática: – “Bem, pelo menos ela é uma mulher sensata. Vai ter mais gente no velório do que em qualquer outra festa que você já organizou!”. Até agora não consegui entender o que Belzebú queria dizer com isto. Mas vá lá. Não sairia deste mundo com pensamentos nos dizeres da indigitada. A festa era minha e ninguém a estragaria. Ela já tinha gastado toda cota de água no chope  que uma pessoa tem direito de zoar na vida.

Enquanto todos gargalhavam, minha esposa não perdeu o rebolado. Com um sorriso travesso, ela respondeu: “Bem, mãe, pelo menos eu sei que poderei contar com sua presença garantida no meu evento funerário. E quem sabe, talvez você até faça um discurso memorável!”. Aí mexeu com meus brios. Não gostar de mim, tudo bem, mas encher os pacovás dos convivas com cantilenas que do nada poderiam descambar pra falar, mais uma vez, mal de mim, jamais. Arretei!! Esta cabreúva fazer discurso, nem em cima do meu cadáver.

Não bastasse o climão do desconvite à oradora, adentra a sala minha azeda cunhada, certa de  que daria muitos palpites no meu “evento final”. Acostumada a mandar no bocó do seu marido, que lhe faz merecer o título de Rainha do Corno Maxixe, iniciou seus pitacos: “Ah, horário ruim pra festa, quase não consegui agenda no cabeleireiro. Este aí só trouxe problemas para nossa família. Precisamos garantir que todos possam comparecer e se despedir adequadamente!”.

Minha esposa, a bondosa incendiária, aproveitando a deixa, respondeu com um sorriso: “Hoje o dia é dele, mana! Quem não vier perdeu uma bela festa”. Esta fala me rendeu um recado ao pé do ouvido, não esquece de acertar tudo, com teu cartão, com o cara de preto na porta da cozinha. Ele só vai liberar as bebidas depois que receber. Manteve-se o padrão. Festa pra eles, ferro pra mim.

Enquanto a conversa continuava, brincaram sobre a possibilidade de enviar convites formais para o meu velório. A esta altura já não estava achando muita graça. o limite do cartão faltava pouco para estourar e não estava a fim de sair dessa com fama de quebrado. 

Para findar a aglomeração, com um sorriso no rosto, eu prometi à minha cunhada que meu “evento final” seria o dos sonhos de todos. à minha sogra prometi três minutos de prosa, para não dar tempo de falar mal de mim. À minha esposa, apenas o direito de chorar baixo e sem escândalos, mesmo porque ninguém acreditaria. Pelo bem de nossos filhos, que tomasse jeito, e não recebesse o título de Viúva Alegre.

Enquanto eu compartilhava com meus amigos as peculiaridades dos preparativos do meu evento final, não pude deixar de ouvir a observação do mais ponta firme dos meus colegas de boteco: “E o churrasco que marcamos para sábado?” Compromisso sagrado. Mesmo sem terem bebido ainda, riram bastante. Dei um basta na festa. Compromisso de buteco é compromisso de fé. Acabou o show. Vamos queimar algo, mas com muita cerveja e carne macia.

Botei a curriola pra correr e fomos pro boteco. Chorava a mulher que organizou a festa, praguejava a sogra que não me cremara e resmungava a cunhada que perdeu a escova pra festa que não houve.

Combinamos que o churrasco seria um momento de descontração, uma oportunidade para criar novas memórias enquanto ainda estávamos todos vivos e aproveitando a vida. Meus amigos, com seu humor característico, já estavam planejando brindes engraçados e histórias inusitadas para compartilharmos no sábado.

E assim, entre risadas e brincadeiras, curtimos um sábado cheio de emoções, onde meu “evento final” e o churrasco se fundiram em uma celebração única. Para tristeza de quem esperava que o prato fosse eu, encontramos um espaço para a alegria e a camaradagem.

Eduardo Sguario dos Reis

Mané por opção, gateiro raiz e democrata convicto. Tem as pessoas em primeiro lugar. Gosta do debate, do contraditório e de novas idéias.

Uma resposta para “Já marcaram a minha cremação!!!”

  1. Anisio

    Grande Eduardo, com o enredo discorrido, criasse uma inicial “Boa expectativa” para a santa esposa e ao final frustrou a “Alegria antecipada” da querida sogra. Coisas da vida. Ao final os “amigos” de verdade sempre nos darão guarida, pois acredito pelo fato de vivenciarem o mesmo dia a dia e por espelharem a vida como ela é.
    Para fechar, somente não concordei muito com o teu currículo de “democrata convicto”, sabes a minha opinião. rsrs.
    Abração Amigo, Sucesso aí colunista.

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